Por Conceição Evaristo
“Favelada com
fogo na língua”, é como os políticos
conheciam minha mãe. Ela ia aos comícios durante
os períodos das eleições para catar papel da propaganda, mas se empolgava. Os
seguranças ficavam avisados para não criarem caso com a ‘negona’, senão era
pior. Então minha mãe acabava subindo no palanque e de lá descia a lenha nos
candidatos, mesmo no Adhemar de Barros. O Adhemar ela respeitava, mas não tinha
jeito: escreveu não leu, pau comeu”
“Escreveu não leu, pau comeu”. Assim era
Carolina Maria de Jesus, assim quis ser Carolina. Preto no branco. Preto no
branco amarelado das páginas recolhidas do lixo. Tudo lixo. Até a vida podia se
confundir com o lixo, mas havia uma esperança, a escrita.
Nos anos
60, uma mulher negra, pobre, de educação escolar incompleta, pois havia
frequentado a escola somente até a 2ª série primária, catadora de lixo, moradora de uma favela nas margens do Rio Tietê, na grande
São Paulo, surgiu como autora de um diário, nomeado por ela, como Quarto de despejo. Seu aparecimento
causou um grande frisson, principalmente na
classe letrada brasileira. Representantes de uma literatura, que no
singular, pretendia e ainda pretende se
impor como nacional, assim como jornalistas, pesquisadores,
críticos literários, políticos, enfim homens e mulheres mais ou menos
representativos da “inteligência” brasileira lamentaram a intromissão, a
impertinência de letras tão estranhas no corpo sagrado da literatura
brasileira. Autoridades que não
conseguiam digerir como uma mulher tão sem “predicados” para ser escritora, segundo a visão deles,
atrevidamente se afirmava como tal.
Entretanto Carolina Maria de Jesus insistia em sua escrita, que, aliás,
havia começado desde final dos anos 50,
ou talvez até antes.
Carolina
Maria de Jesus, conforme aparece em seu registro, nasceu na cidade de Sacramento, em 14 de março de
1914. Data que é, entretanto colocada em dúvida, pois diverge da certidão de
batismo, que destaca o seu nascimento como sendo em 6 de outubro de 1915. A imprecisão sobre a data do nascimento da
escritora aumenta quando se lê em Diário
de Bitita, vários episódios de sua infância e
juventude. Em um dos relatos, a escritora traz à memória a
lembrança da morte de seu avô, em 1927,
Carolina Maria afirma que tinha 6 anos
na ocasião. Discordando das outras datas apresentadas, jornais da época em que
a escritora foi revelada e se tornou
o assunto preferido da mídia, informam o
nascimento dela, como sendo no ano de 1913. Esse e outros dados
biográficos da vida de Carolina Maria de Jesus estão para serem compreendidos.
Nesse sentido, um dos primeiros estudiosos da obra da escritora, José Carlos Sebe Bom Meihy afirmou que nos anos que precederam à morte da escritora,
que se deu em 13 de fevereiro de 1977, o “panorama histórico vivencial” de
Carolina de Jesus continuava desconhecido. A vida dela era sempre apresentada por
fragmentos e nunca um enredo completo e compreensível que pudesse fornecer uma
apreensão completa de sua biografia. Nos últimos anos,
entretanto, têm surgido obras mais completas sobre a autora.
A saga de Carolina Maria de Jesus pode ser observada desde a
infância, nos relatos apresentados no livro Diário
de Bitita, em que a escritora rememora
a sua infância, a sua juventude e
sua chegada em São Paulo. As
peregrinações dela, ainda criança, com família, mãe e padrasto, por cidades no
interior de Minas Gerais, em busca de trabalho como lavradores empregados em
terras dos fazendeiros ou meeiros injustiçados, já que não eram donos de
terras. Enfrentando uma série de dificuldades, despotismo dos fazendeiros e
seus capatazes, autoritarismos das famílias ricas e mandantes nas pequenas
cidades interioranas, mandos das patroas, trabalhos mal renumerados, problemas
de saúde, uma dolorosa ferida na perna, Carolina Maria de Jesus, como os retirantes do Norte e Nordeste do Brasil,
seduzidos pela possibilidade de arrumar a vida no sul, procura São Paulo. Ela crê também que naquele estado
estaria a sua salvação, a saída de sua condição
de pobreza. Depois de morar
em algumas cidades do interior do estado
de São Paulo e retornar a Sacramento, em
1937, parte com uma família de posses, para trabalhar como doméstica, na capital paulista. Todavia com um
temperamento não afeito a obediência, a subserviência, Carolina de Jesus não
suportou os limites da época impostos às
empregadas domésticas. Não se adaptou ao tipo de trabalho e buscou uma
autonomia, mesmo enfrentando o risco de viver de uma forma mais precária ainda,
optou por trabalhar por conta própria. Catar papel e restos para sobreviver,
tornou-se a sua ocupação, o seu trabalho para se sustentar e aos seus três
filhos: João José, José Carlos e Vera Eunice.
Antes ela já havia experimentado várias
formas de sobrevivência como lavradora, doméstica, faxineira, vendedora
de cervejas,auxiliar de enfermagem, palhaça de circo. Mas foi como catadora de
papel, quando essa atividade não era recoberta e nem amparada pelos discursos
ecológicos de hoje de reaproveitamento do lixo
e as cooperativas dos catadores de papeis não existiam para buscar dignificar e
garantir direitos das pessoas que se
ocupavam daquele fazer, foi
que Carolina Maria de Jesus surgiu como escritora.
Do interior da Favela do Canindé, às margens do Rio Tietê, uma voz
de mulher negra e pobre, apresentada pelo jornalista Audálio Dantas,
feria o otimismo que reinava nos
“Anos Dourados”. Anos de ouro, somente para determinados extratos sociais, pois
um contingente enorme da sociedade brasileira vivia em a situação de
extrema pobreza como Carolina, que
gritava para o Brasil e para o mundo a miséria em que vivia com os
filhos. Assim o livro Quarto de Despejo, obra
inaugural de Carolina Maria , no mundo das letras, circulava entre a euforia da construção de Brasília, o progresso urbano de
várias cidades, ilustrando a força da
modernização nacional e as grandes levas de
populações que se deslocavam do
campo para as grandes cidade,
mas que
ficavam às margens do anunciado milagre do desenvolvimento. Entretanto,
reinava a esperança de uma possível transformação político-social. Acordes
inocentes da Bossa-nova eram propagados em no meio às manifestações da
contracultura, entre as práticas litúrgicas renovadoras de uma igreja católica
que se queria junto aos pobres. Movimentos de base, agrários e urbanos,
advogavam o direito do povo à cultura e à alfabetização. Estudantes,
intelectuais, artistas se comprometiam com a luta de conscientização e politização
das camadas populares. Os escritos de Carolina, suas entrevistas,
suas aparições nos programas de rádio e
televisivos, tudo se coadunava com os anseios, com o espírito de um
jornalismo de denuncia que vigorava nos anos 50-60.
A história de Carolina Maria era a encarnação concreta dos
perigos do subdesenvolvimento e ao mesmo
tempo que testemunhava a pobreza de uma vida particular, a sua, documentava a condição de vida de uma coletividade.
Carolina de Jesus era a voz que
se precisava ouvir naquele momento. Havia certa receptividade, nem que fosse
aparente, nos meios culturais, para expor o que pudesse simbolizar a diferença.
E nesse contexto, a obra Quarto de
despejo se tornou em curto espaço de
tempo o livro mais lido por uma classe
média, que de certa forma expurgava as suas culpas, tomando conhecimento e se
emocionando diante da fome vivida e narrada por uma favelada.
José Carlos Sebe Bom Meihy afirma
que a atenção que a imprensa nacional dispensou à figura da autora funcionou
como “um trampolim para o seu sucesso internacional”. Para Bom Meihy, “a projeção de Carolina foi
tão vertiginosa”, e jamais outros testemunhos de autoria de mulheres pobres
alcançaram graus comparáveis ao dela.
O enfático título dado ao livro pela escritora
aparece justificado em passagens de seu diário.
“ ...
Eu classifico São Paulo assim: O Palácio é a sala de visita. A Prefeitura é a
sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde se jogam os lixos”.
“Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita
com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E
quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno
de estar num quarto de despejo”.
Quarto de despejo,
no ano de seu lançamento, foi editado oito vezes, com tiragens de 10 mil
exemplares cada. Carolina Maria de
Jesus, nos anos 60 se equiparou em termos de vendagens, ao escritor Jorge
Amado, que era um dos mais conhecidos na época, no Brasil e no exterior. Ainda na década de 60, o livro foi traduzido
para 14 idiomas. Entretanto, em 1961, a escritora já “era carta fora do
baralho” no Brasil.
Com uma ascensão vertiginosa, Carolina Maria de
Jesus viu seu prestígio definhar com a mesma rapidez com que foi construído, De
um momento para outro de “objeto de consumo”, passou a “produto indesejável”,
embora o livro Quarto de despejo
continuasse ser traduzido no exterior, lido e estudado principalmente nos
Estados Unidos. Aqui no Brasil, além do processo de ditadura que se instalou em
64, abafando a efervescência dos movimentos sociais interessados nas questões
colocadas pela escrita de Carolina de Jesus, a
imprensa e as editoras foram se
desinteressando dela. Enquanto a crítica literária seguia desmerecendo, negando
a potência literária de seus textos e apontando os “erros gramaticais e
ortográficos”, de sua escrita, pois a
escritora não dominava a norma (o)culta da língua. Para Joel Rufino, Carolina
de Jesus “desmoralizou o argumento
classista de que para ser escritor é
preciso dominar a língua, como se ela fosse única para todos”.
Reflexões do mesmo teor são colocadas por Eliana
Castro e Marília Machado, ao observarem a feroz exigência crítica em relação
aos modos como Carolina usava a língua portuguesa em sua escrita,
destoando do registro culto do idioma, que zela pela correção gramatical: As
pesquisadoras observam que:.
[...]
Os cânones literários só admitem que as regras gramaticais sejam infringidas se
deliberadamente e com conhecimento de causa. Ora, esse não é o caso de
Carolina, que não teve acesso a uma educação formal e não pode corresponder às
exigências do mundo letrado. Mas a harmonia de suas frases dificilmente deixa o
leitor insensível: “De dia tenho sono e de noite tenho poesia”
A má-vontade de muitos intelectuais
da época e ainda de muitos pesquisadores contemporâneos de literatura em
considerar os escritos de Carolina como literários, se deve tanto ao que
ela escreveu como à
forma como foi escrito, principalmente quando a atenção dessas leituras se
volta somente para a obra o Quarto de
despejo. Há uma tendência em considerar o livro, como mero testemunho, ignorando
assim o processo de criação literária existente
no texto. Soma-se a esse fato o
desconhecimento da obra completa da escritora.
Entretanto, aos
poucos, leituras e pesquisas mais inclusivas, que buscam a apreensão da
pluralidade dos discursos literários que compõe a literatura brasileira vêm
promovendo uma compreensão mais ampla da obra da escritora. Essas
pesquisas se voltam não somente para o
livro Quarto de despejo, mas também
para outras publicações menos conhecidas
de Carolina Maria de Jesus. Regina
Dalcastagnè discorrendo sobre o papel
relevante da crítica e da pesquisa acadêmica
como força de legitimação de
uma obra literária, afirma que:
[...] Ler Carolina Maria de Jesus como literatura, colocá-la ao lado de
nomes consagrados, como Guimarães Rosa e Clarice Lispector, em vez de relegá-la
ao limbo do “testemunho” e do “documento”, significa aceitar como legítima sua
dicção, que é capaz de criar envolvimento e beleza, por mais que se afaste do
padrão estabelecido pelos escritores da elite.
E quem lê Carolina com a
atenção, que a sua obra requer e merece, tem a nítida impressão que ela se
salva pela literatura, apesar de tudo. Se não fosse a escrita, o desalento dela
talvez fosse maior. Entretanto, três
anos após estrondoso sucesso de Quarto de
Despejo, a escritora fez esse desabafo, “Eu já estou me desiludindo da literatura.
Cansa-se muito. E é tanta confusão que o meu ideal já está atrofiando-se”. É
preciso observar, porém, que ela
vivia novamente momentos de penúria e
desconfiava que estava sendo lesada pelas editoras, assim como pelo próprio
Audálio Dantas, com quem já havia cortado relações, desde 1962. Ela havia
acreditado que a publicação de seus livros lhe tratariam fama e dinheiro
perene. Entretanto, Carolina como muito
escritor ou muita escritora tinha
compulsão pela escrita e esse sentimento aparece muito bem ilustrado em Quarto de despejo. Nesse sentido, ressalto as considerações de
Castro e Machado sobre a função da escrita, como suporte emocional, para
Carolina Maria de Jesus. As autoras de uma inspiradora biografia de Carolina
dizem: “Escrever, para Carolina, era uma necessidade vital” e não um ato de
fuga, pois ela registra a realidade em seu aspecto mais cru, enfrentando tudo
com “galhardia”. A escrita é para Carolina “um refugio”, “um amparo”, momentos
em que se torna “independente da
favela”. É ainda uma maneira da escritora se conciliar consigo mesma e “de
entender melhor o que lhe vai na alma.”
Na escrita, Carolina se fortalecia para “afrontar” as interdições que sofria
pela discriminação racial e pela pobreza. A escrita lhe ajudava a suportar a
fome. Pela escrita, nesse “salto criativo” ela encontrava “um bálsamo”.
Insistindo em escrever e
em publicar, Carolina segue tentando ser
reconhecida, sabendo inclusive da posição de
desvantagem em que estava. Tinha de se
legitimar como escritora e assim erigir “uma representação de si mesma”
buscando o reconhecimento daqueles que a cercavam. Sabia que estava “saindo do lugar” que a
sociedade tinha reservado para ela, o da
subalternidade. Diante dessa situação em
desvantagem, tinha de justificar, de provar que era escritora e por isso o
diário, a escrita que se confunde com a verdade. A afirmativa de “que é preciso conhecer a
fome para escrever a fome” é enfática no
sentido de comprovar de que a escrita de Quarto
de despejo é dela, é de autoria dela. É ela a escritora. Para Regina Dalcastagné, essa condição vivida por Carolina não é uma situação, que
Clarice Lispector ou Rubens Fonseca teria de enfrentar, a eles, dificilmente
seria pedido a prova de que seriam escritores. Todas essas tensões vividas por
Carolina de Jesus aumentavam o esforço dela para vencer o desafio e se afirmar
como escritora. Outra ambiguidade também
estava escrita na luta empreendida por Carolina de Jesus para se colocar no
campo da literatura. Na favela, diante de seus iguais, ela se sobressaia como
escritora. Fora dos limites da favela, era a favelada, a voz subalterna que
escreveu um diário, que construiu um testemunho.
Imitar um tipo de escrita já ultrapassada era o jogo de criação de
Carolina, ela conhecia sumariamente um pouco da Literatura Brasileira , e esse
pouco se tornou modelo para sua
escrita. “Escrever limpo e certo, dentro
da tradição da língua, sem nenhuma marca inovadora ou característica” era o
desejo de Carolina, conforme constata o revisor da antologia poética da autora.
Afirmando sempre a sua condição
de escritora e reivindicando tal
reconhecimento em diversas ocasiões,
Carolina entretanto, sabia das interdições
que lhe eram impostas. Tinha consciência de que a condição de negra e pobre pesava contra
ela. Creio que essa estrofe, que
aparece em seu livro de poesias, dá
a medida exata da noção de Carolina de
Jesus sobre a porta que ela tentava abrir:
Eu disse: o meu sonho é escrever!
Responde o branco: ela é louca.
O que as negras devem fazer...
É ir pro tanque lavar roupa.
Observe que a resposta do branco,
construído por Carolina, na estrofe é dirigida não só a ela, mas às “negras” em
geral. E indica o lugar de
subalternidade que Carolina experimentava, assim como muitas mulheres negras experimentam. Desse lugar, ela não deveria e nem poderia
sair, fica subtendido na intervenção feita pelo branco. Na composição desses
versos, Carolina se reconhece como pertencente a um grupo discriminado. E se a
resposta dela, nem sempre, aparece
articulada no discurso poético é pelo
próprio ato de escrever que ela responde.
Ao escrever ela se recusa a
cumprir a expectativa e o imaginário do branco, em relação às mulheres negras,
enfrenta uma interdição que lhe é imposta.
Ao apropriar-se da escrita, Carolina simboliza não só o desejo, mas o
gesto das classes populares apropriando-se de ferramentas culturais avaramente
guardadas pelas elites letradas do país. E demonstra que essas ferramentas
quando mudam de dono, podem ser usadas contra
seus antigos e históricos “senhores”, como nessa passagem, em que a letra de
Carolina grafa em seu diário, a avaliação que ela faz dos políticos:
.
... Mas eu observei os nossos políticos. Para observá-los fui na
Assembléia. [...] Vi os pobres sair
chorando. E as lágrimas dos pobres comovem os poetas. Não comove os poetas de
salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que
assiste e observa as trajedias que os políticos representam em relação ao povo.
Ou nessa, em que a escritora deixa a
sua imprenssão contra a presidência do pais,
ao observar o olhos vermelhos de um carteiro conhecido, em que ela
imagina ver a fome, e notar o uniforme surrado do homem:
[...] Encontrei o Sansão. O carteiro. [...] Ele estava com
os olhos vermelhos. Pensei: será que ele chorou? Ou está com vontade de fumar
ou está com fome! Coisa tão comum aqui no Brasil. Fitei o seu uniforme
descorado. O Senhor Kubstchek que aprecia pompas devia dar outros uniformes
para os carteiros. [...]
Eu não gosto do Kubstchek. O homem que tem um nome esquisito
que o povo sabe falar mas não sabe escrever.
Ou ainda, neste outro registro:
“você já viu um cão quando quer segurar a cauda com a boca e fica rondando sem
pegá-la? É igual ao governo do Juscelino”
E ainda, a sua famosa frase, escrita
em maio de 1958:
“ E assim no dia 13 de maio de 1958
eu lutava contra a escravidão atual – a fome”
Percebendo que a literatura, para
além da arte, é um campo de exclusão para determinados grupos sociais e
étnicos, respondendo a uma critica de
jornal em que foi acusada de “pernóstica”,
Carolina pergunta no livro Casa de
Alvenaria : “Será que o preconceito existe até na literatura? O negro não
tem direito de pronunciar o clássico?”
Essa constatação de Carolina Maria de Jesus, travestida na
pergunta anterior vai de encontro a determinadas afirmativas de que ela não
tinha nenhuma consciência racial. Deduções que são feitas a partir de leituras
apressadas de Quarto de despejo. Não se
trata de negar, que em muitas passagens de seus livros, Carolina de
Jesus traz conceitos racistas,
demonstrando a incorporação dos mesmos.
Mas, a par de toda e qualquer contradição da escritora,
aparece em seus textos uma consciência, não só, de que a sua condição de
mulher negra e pobre, se torna motivo
discriminação, assim como reconhece que essa perversidade abate sobre as
pessoas negras em geral, como
exemplifica essa passagem registrada no
primeiro livro da autora:
11 de Agosto ... Eu estava pagando o sapateiro e conversando
com um preto que estava lendo um jornal.
Ele estava revoltado com um guarda civil que espancou um preto e amarrou numa
árvore. O guarda civil é branco. E há certos brancos que transforma preto em bode expiatório. Quem sabe a guarda
civil ignora que já foi extinta a escravidão e ainda estamos no regime da
chibata?
Ainda em Quarto
de despejo escreveu:
Eu escrevia
peças e apresentava aos diretores de circo.
Eles
respondia-me
--É pena você
ser preta.
Esquecendo
eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico.
[...] Se é que
existe reencarnações, eu quero voltar
preta.
Se em Quarto de Despejo, a escrita de Carolina de Jesus, mesmos com os
exemplos, fora outros, segundo alguns
críticos, é pouca enfática no que diz respeito à condição étnica da autora, enquanto pessoa
negra, não se pode dizer o mesmo das produções após a sua primeira obra. O enfrentamento ao racismo aparece tratado de
forma explicita. Além de a escritora ter incorporado um pouco a visão e o
discurso da militância negra, o contato dela com elite branca nacional e
estrangeira se torna mais freqüente e como conseqüência, mais situações de
discriminação, ela encontra.. Em Meu estranho Diário , se lê essa passagem registrada no dia 22 de novembro de
1963: “So
uma coisa eu digo: depôis que sai da favela fiquei racista preto e branco não
acertam o passo, dançando esta musica que se chama vida”.
O
livro Diário de Bitita é uma obra em
que não permite nenhuma dúvida
sobre o posicionamento da escritora, enquanto pessoa negra, consciente de que a
sua condição étnica. Em vários momentos
a escrita memorialística da autora, retomando as lembranças da infância e da juventude, expõe
o racismo que existe na sociedade brasileira. Vários registros como os
citados a seguir, revelam a
compreensão da escritora sobre a crueldade das relações raciais brasileiras,
que colocam o sujeito branco e sua
cultura como um modelo a seguir. Carolina relembrando a sua infância fala do
afeto que ela nutria por sua madrinha, uma senhora branca, que demonstrava
carinho por ela, dizendo que:
[...] Ela era branca. [...] Eu
pensava que era importante porque minha madrinha era branca.
A citação a seguir traz uma reflexão
da escritora em relação às mulheres negras, que desenvolvendo suas atividades
na “casa-grande”, ainda eram tomadas como objeto pelos patrões:
Mas se a
cozinheira tinha filha, pobre negrinha! O filho da patroa a utilizaria para o
seu noviciado sexual. [...] No fim de nove meses a negrinha era mãe de um
mulato , ou pardo. [...] Que luta para aquela mãe criar aquele filho. Quantas
mães solteira se suicidavam, outras morriam tísicas de tanto chorar.
A consciência de si como pessoa
negra se revela em vários momentos da escrita de Carolina, embora ela não
tivesse comprometida com a luta coletiva. Uma consciência que abarcava não só a
sua situação pessoal, mas a condição de um grupo, de um coletivo, como indica
este registro:
Quando havia um conflito,quem ia preso era o negro. E muitas
vezes o negro estava apenas olhando. Os soldados não podiam prender os brancos,
então prendiam os pretos. Ter uma pele branca era um escudo, um salvo- conduto.
Nesse mesmo livro, Carolina
relembrando cenas de infância relata a perversidade, carregada de racismo, de
uma de suas patroas que prometeu algo inusitado a Bitita, isto é, a Carolina, quando pequena. Um remédio que a tornaria branca de “cabelo corrido” e mais tarde um médico afilaria seu o nariz.Essas promessas buscavam a garantia de que Carolina trabalharia para
ela. Depois de seis meses de trabalho de
graça, a patroa viajou e voltou sem o remédio prometido. Não trouxe a solução
para que ela se tornasse uma pessoa
branca e não lhe deu nenhum pagamento, segundo as expectativas da menina. Carolina contou a mãe que a patroa havia lhe
enganado, o relato a seguir situa a mãe
diante do fato e da tristeza Carolina:
[...]
Minha mãe me dizia que o protesto ainda não estava ao dispor dos pretos.
Chorei.
Olhei minhas
mãos negras, acariciei o eu nariz chato e meu cabelo pixaim, e decidi ficar
como nasci.
Considerando esses e outros relatos presentes na escrita de Carolina Maria de Jesus, percebe-se uma
consciência de sua condição racial, mesmo sendo diferente da militância negra
da época e bem distante das propostas da militância contemporânea. A
consciência de Carolina de Jesus
mostrava mais constatativa do que propositiva.
Entretanto, ela enfrentou sozinha aqueles que lhe ajudaram e os que lhe
atrapalharam também. A escrita foi a sua
arma, seu lócus de luta. Atrevimento
e impertinência em todos sentidos.
Carolina pagou um alto preço por sua audácia. Autodidata,
seu aprendizado foi se construindo
de várias formas. Lendo sozinha livros de literatura, inclusive os
Lusíadas de Camões, com auxilio de
dicionário, buscando
conhecer livros de história do
Brasil, ouvindo discursos políticos,
conversando com as pessoas , observando seus parentes, especulando a vida de
sua família, ouvindo e relembrando sempre as lições de seu grande mestre, o avô, a quem ela chamava de Sócrates
Africano . Na favela observando a vida em torno, seus vizinhos, na cidade, caminhando quase
como indigente pelas ruas do centro de
São Paulo e mais tarde, aprofunda seus conhecimentos, em confronto com um mundo que ela conseguiu
atingir. A inquietação, a busca, o
descontentamento com a mediocridade de uma vida, eram qualidades de
Carolina Maria de Jesus, mas para
muitos eram vistas como defeitos. Ela
foi vista como uma pessoa de temperamento indócil, temperamental, ignorante,
etc. O modo de ser de Carolina Maria de Jesus em outros escritores ou
escritoras seria considerado como um dado original da personalidade da pessoa,
uma marca própria, uma bem-vista extravagância, porém nela, aos olhos de
muitos, tudo se converteu em falha de comportamento, de educação, de
conhecimento, desequilíbrio emocional. Informações em uma biografia da Carolina salientam a incompreensão que a escritora sofreu e o desprezo que abateu sobre ela, depois de
sua glória passageira. O texto
biográfico afirma que ela não correspondeu a nenhum estereótipo
previsível para ela. Como negra esperavam
que ela fosse humilde, mas não era, como mulher acreditavam que ela
seria submissa, mas não era, como
semi-analfabeta apostavam em sua ignorância, mas ela não era.
Depois de ter sido
desejada e avaliada por vários grupos, Carolina sobra em sua
individualidade. Uma mulher vinda dos
extratos populares, ou melhor, de uma condição de extrema miséria e que não se
deixava dirigir plenamente nem por aquele, que se tornara seu protetor e que,
aliás, chegava questioná-lo, quando o esperado é que ela fosse só
os agradecimentos. Talvez a
maior luta de Carolina de Jesus, a partir do momento em que ela surgiu como
escritora, tenha sido a para manter a sua autonomia, inclusive gastando o
seu dinheiro como bem quisesse. Nesse
sentido, o seu segundo livro, Casa de Alvenaria, também um diário, onde a escritora
registra o seu quotidiano depois
que saiu da favela, é uma escrita reveladora “da falta de lugar”
experimentada por Carolina Maria de Jesus.
Uma mulher que não agradou plenamente a ninguém, que não se filiou a
qualquer bandeira. Para os comunistas, o discurso dela era por demais pessoal,
não acentuava a questão de classe, para a militância negra, faltava a Carolina
de Jesus a consciência racial e a sua inserção na luta coletiva, aos literatos,
à academia, os textos da escritora eram considerados como de 2ª categoria. E
para os favelados, seus companheiros de miséria, Carolina deveria ser
apedrejada como foi o caminhão que levou a sua mudança para a casa de
alvenaria. E é nessa ambiência de não aceitação, nesse lugar, sem lugar, que a
escritora concebe a sua escrita.
A
poética de Carolina surge construída pela força de sua audácia, de seu
atrevimento, de sua impertinência, de sua solidão, desde a matéria,o conteúdo, até a forma como ela desenvolve essa escrita,
não esquecendo o lugar social onde seu textos se originam. E mais.
O sujeito da escrita aparece em articulação profunda
com o sujeito da vivência descrito
nas obras. Isto é: Carolina Maria de Jesus, personagem concreta, sujeito de uma vivência se dispõe a escrever
o seu cotidiano, o de uma mulher negra e pobre.
A distinção de seus escritos reside no fato de que o sujeito da escrita, a
pessoa que está produzindo o texto, não
é estranho à experiência que está sendo narrada. Ela escreve desde “de dentro”, o que confere autencidade
à sua obra. E nesse sentido a escritora pretende levar para
escrita, a sua experiência, sua
vivencial negra. Se ela estava munida de ferramentas para empreender uma
análise profunda de sua situação como mulher negra na sociedade brasileira e ou
se foi capaz de criar respostas efetivas para o
enfrentamento ao racismo, ou se
já havia expurgado de si mesma, todo imaginário negativo e corrente
contra os africanos e seus descendentes no Brasil, sabemos que não. Mas, entretanto corajosamente
ousou e nos deixou a com a sua
escrevivência. E uma pergunta fica. Pode
Carolina Maria de Jesus escrever tudo o
que queria? Houve censura em sua escrita? Cortes e arranjos? Como sujeito
subalterno, pode Carolina Maria de Jesus falar,
como pergunta Gayatri Spivak. Seu “protesto”, seu “clamor”, estabeleceu
uma relação dialógica, houve um trânsito entre a voz dela e a do ouvinte. Precisamos acreditar que sim. A contundência
da escrita caroliana correu e corre o
mundo. Os subalternos gritam desde
dentro de seus silêncios, há séculos e séculos. O eco de suas vozes pertubam e
intentam rearrumar o mundo. Cremos.